Caro fado,
Quero agradecer-te.
Sempre vivi a minha vida avançando confiante sobre o que tinha à frente, até ao dia em que à minha frente vi um buraco grande e escuro que me obrigou a parar. Parar apenas por uns momentos: não para contemplar, parar para decidir.
Nasci bem longe de ti, ó fado. Nasci em terra de searas a perder de vista, searas da cor do meu cabelo e do cabelo daqueles com quem cresci. Esse dourado das espigas e das madeixas a caírem sobre as peles pálidas, que seria seco não fosse o azul do mar que banha a Odessa onde sempre vivi. Esse amarelo e azul que são a nossa identidade, são a nossa bandeira. Cresci rodeada de mar, numa cidade que agora choro, porque não mais a tenho.
Foi no dia 24 de fevereiro de 2022 que aquilo que parecia ser uma pequena racha se tornou num buraco impossível de contornar. Nesse dia, a vizinha Rússia invade a minha Ucrânia. É injusto que uns poucos homens com ambições que escapam a tudo o resto que respira tenham o poder de mudar o mundo. Na minha cabeça, só houve uma alternativa: abandonar a terra mãe.
Tarefa difícil é deixar para trás uma vida e outra igualmente difícil é criar uma nova vida à nossa frente. Entre tanta gente, sobrava eu e a minha pequena filhota à procura duma cidade para nos acolher.
Escolhi ir para longe de todo aquele desastre que parece nunca mais acabar. Retomei o contacto com um primo meu que tinha saído há mais tempo do nosso país (esse também por necessidade, mas a necessidade de procurar uma vida mais confortável e não a de fugir a uma guerra).
E acabei no teu berço sem muito dele saber, ó fado. O meu primo já trabalhava há quase vinte anos na capital e tinha uma casa suficientemente jeitosa para me receber. Eu e a minha filhota mudámo-nos para o seu pequeno sótão. Conheci as tuas avenidas e ruelas: passei muito tempo a admirá-las, em viagem a pé e nos teus transportes.
Passo várias vezes por uma escada escada para apanhar o comboio que me deixa sempre a pensar. Uma escada na qual, ao subir, apenas vemos os degraus da frente a curvar-se, sem ter a certeza onde eles vão dar.
Um pouco como acontece na vida: a verdade é que bastam apenas algumas decisões difíceis para nos aguentarmos. A partir do momento em que pomos o pé no primeiro degrau, já só precisamos de respeitar o movimento do corpo.
E assim fiz também com esta linda cidade. Vinda eu de Odessa como poderia ter sobrevivido sem mar. E que sorte tive eu: tanto mar, tanto mar.
Vinda de fora, procurei ser uma boa convidada e perceber melhor quem era a minha anfitriã. E o que define melhor Lisboa que tu, ó fado? Está lá tudo. Se prestar muita atenção, consigo, inclusive, ouvir, entre notas, as melodias das canções da minha infância.
Passei várias noitadas calada a assistir-te, que eram depois complementadas a estudar as letras das tuas músicas, no sossego do meu sótão. Até ao dia em que chegou a coragem de enfrentar-te, ó fado. Escolhi um poema que me tocava muito e soltei os sentimentos para cima da guitarra e da viola que me acompanhavam. A casa aplaudiu e eu fiquei corada.
Hoje já sou mais portuguesa e certamente não caí na terra de ninguém onde muitos refugiados acabam por ficar. E tudo por causa da música: essa cultura que aproxima culturas. Foi ao ouvir-te que eu quis cantar-te. E procuro hoje mostrar-me genuína e vulnerável como tu.
Por isso, te agradeço, ó fado,
nadehzda p.
PS: Eu sei que ainda se nota um pouco do meu sotaque, ainda que, para me fazer sentir bem, toda a gente finja que não. Não leves a mal, é uma forma de fazer-te mais meu.
A personagem ficcional Nadehzda Petrov foi encarnada pela Natalia na casa de fados Tasca do Chico de Alfama.